quinta-feira, 12 de julho de 2012

Novo ateísmo, realismo moral e direitos animais: algumas reflexões preliminares

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 15 de abril de 2012

Certos secularistas, como Richard Dawkins, Sam Harris e o falecido Christopher Hitchens, frequentemente chamados de “novos ateístas”, são os últimos a nos dizerem que devemos nos guiar pela racionalidade e a ciência para descobrir o que pensar sobre as questões morais importantes. Esses novos ateístas geralmente rejeitam a noção de que pode haver verdades morais independentes ou que as ações podem ser intrinsecamente erradas; e rejeitam a noção de que há regras morais absolutas. Afirmam que a moralidade informada por considerações espirituais ou religiosas deve ser rejeitada.
Quero examinar alguns aspectos dessa posição como uma questão geral que, em muitos sentidos, não é realmente uma novidade trazida pelos novos ateístas. Também quero discutir como essa posição afeta nosso pensamento sobre a ética animal dado que, nestes últimos anos, venho notando um aumento no número de defensores dos animais que acreditam que os direitos animais possam ser seguramente baseados na racionalidade e na ciência apenas, e que rejeitam a noção de que pode haver verdades morais independentes ou que as ações podem ser intrinsecamente erradas.
Deixem-me fazer duas observações logo de saída: Primeiro, esta é uma questão complexa que requer mais do que um simples post de blog. Estou apresentando meus pensamentos preliminares aqui, e terei muito mais a dizer futuramente, em um trabalho que estou desenvolvendo sobre realismo moral e direitos animais.
Segundo, quero enfatizar que se rejeitarmos a ideia de que a racionalidade científica fornece o que necessitamos saber sobre a moralidade, não ficamos relegados a abraçar crenças “sobrenaturais” ou a recuar para alguma espécie de subjetivismo ou relativismo moral. Uma pessoa pode aderir à visão do realismo moral ou aceitar o princípio da não violência como uma verdade moral, por exemplo, sem aderir à visão de que há uma deidade criadora ou de que a personalidade sobrevive à morte física. De fato, parte do problema é que este debate é frequentemente caracterizado como um debate que exige que se rejeitarmos o relativismo, o subjetivismo ou alguma outra posição semelhante, devemos escolher entre o sobrenatural e a racionalidade científica. Essa é uma escolha falsa.
Por favor, escolha: ou os utilitaristas ou os jihadistas
Em sua resenha do livro de Dawkins, The God Delusion, o teórico literário Terry Eagleton observa: “Exceto por algumas referências ocasionais pro forma a pessoas de fé religiosa ‘sofisticadas’, Dawkins tende a ver a religião e a religião fundamentalista como a mesma coisa”.
Além disso, Dawkins também tende a ver a noção da moralidade baseada na regra como uma coisa relacionada à religião, e, dado que Dawkins tende a igualar religião com religião fundamentalista, ele faz comparações entre a moralidade baseada na regra e o fundamentalismo religioso.
Por exemplo, no livro The God Delusion, Dawkins, após aparentemente concordar com Kant e observar que embora “deontologia não seja exatamente o mesmo que absolutismo moral”, diz que “para a maioria das finalidades, em um livro sobre religião não há necessidade de insistir na distinção”. E diz que “nem todo absolutismo é derivado da religião. Todavia, é muito difícil defender as morais absolutistas baseando-se em outra coisa que não a religião”.
Eu certamente concordo que precisamos de alguma forma de realismo moral que forneça uma base segura para os padrões morais absolutos que considero verdadeiros: que é absolutamente errado, por exemplo, explorar os vulneráveis; é absolutamente errado cometer estupro ou abuso sexual infantil, ou explorar os animais. Mas não é necessário derivar a base para esses padrões a partir da religião.
Dawkins observa que, em contraste com os deontologistas, os “consequencialistas afirmam, com mais pragmatismo, que a moralidade de uma ação deve ser julgada pelas suas consequências”, e contrasta o “absolutista” com o “consequencialista ou utilitarista” que tem maior flexibilidade para considerar as questões morais. Então parece que Dawkins esteja tentando caracterizar as teorias consequenciais, como o utilitarismo, como menos propensas a ter ligação com o absolutismo da religião fundamentalista do que as teorias dos direitos. Você já ouviu isso antes? Já ouviu os apoiadores do bem-estar animal, que são sempre consequencialistas de um tipo ou outro, caracterizarem os apoiadores dos direitos animais como “fundamentalistas”?
De todo modo, dentro da medida em que este debate é visto como uma competição entre os novos ateístas e os fundamentalistas religiosos que defendem o assassinato de médicos praticantes de abortos, cometem atentados suicidas, oram pelo apocalipse, fazem aviões se chocarem contra edifícios, promovem todo tipo de discriminação e ódio, e geralmente apoiam toda espécie imaginável de violência em nome de seus deuses, os novos ateístas vencem facilmente, sem o exame e a discussão que este assunto exige.
Mas o debate entre os novos ateístas e os outros exige mais do que decidir se preferimos os utilitaristas aos jihadistas. O aspecto mais interessante desse debate foca na posição de que qualquer conversa sobre padrões morais absolutos ou verdade moral objetiva divorciados da racionalidade científica é problemática e deve ser rejeitada se a pessoa não quiser ser “inimiga da razão”. Nesse sentido, o debate é visto como sendo entre os novos ateístas e qualquer pessoa que afirme que precisamos de alguma verdade moral objetiva e independente, alguns padrões morais absolutos que vão além do que a ciência é capaz de nos dizer. Embora os extremistas religiosos certamente se encaixem neste segundo grupo, a controvérsia mais geral existiria mesmo se eles não estivessem em cena.
Quero focar nos membros do segundo grupo que aderem a alguma versão do realismo moral, ou a noção de que os enunciados morais expressam afirmações que pretendem ser verdadeiras ou falsas, e que ao menos algumas dessas afirmações são verdadeiras. Por exemplo, um realista moral considera o enunciado “a escravidão é errada” semelhante ao enunciado “a cadeira é marrom”. A primeira declaração, como a segunda, pretende relatar um fato, embora um fato moral, e ambas são verdadeiras se as coisas forem conforme se afirma (a escravidão é errada; a cadeira é marrom). O realismo moral não é a visão de que as verdades morais são construídas, ou tornadas verdadeiras, como resultado do que as pessoas valorizam moralmente; em vez disso, as verdades morais existem independentemente de qualquer perspectiva, inclusive as perspectivas ideais. Além dos realistas morais, também quero incluir nesse segundo grupo as pessoas com posições relacionadas a tradições espirituais não ocidentais (e com frequência não teístas) que promovem a não violência, ou que aderem a religiões teístas tradicionais mas rejeitam as interpretações dessas tradições que apoiam a violência e o ódio, abraçando em vez disso interpretações que apoiem a não violência e o amor universal.
Um exemplo do tipo de debate que tenho em mente (mas não vou discutir em detalhes aqui) é aquele entre Christopher Hitchens e Chris Hedges, ou entre Sam Harris e Hedges. Hedges rejeita o tipo de fundamentalismo religioso que é o alvo principal dos novos ateístas. Mas ele argumenta que a racionalidade científica não é a resposta pois ambos os grupos são igualmente intolerantes: “Quem não enxergar as coisas como eles enxergam, não falar como eles falam e não agir como eles agem merece apenas a conversão ou a erradicação”.
O debate entre Hedges e os novos ateístas é informado, em alguma medida, pelo fato de que Hedges, ex-correspondente internacional e vencedor do Prêmio Pulitzer de jornalismo, fez reportagens sobre conflitos no Oriente Médio, Bálcãs, África e América Central, e passou muito tempo testemunhando todo tipo de atrocidades. Compreensivelmente, ele tende a focar o debate em como os novos ateístas parecem apoiar coisas como a guerra contra o Iraque, conforme fez Hitchens, ou a alegação de Harris de que estamos “em guerra com o Islão”.
Embora em geral eu concorde com a opinião de Hedges sobre os novos ateístas, quero explorar a questão sob uma perspectiva mais ampla. Na próxima parte, argumento que a noção de que devemos agir racionalmente sob qualquer circunstância é uma noção normativa que, como os axiomas da matemática, não pode ser “provada” e deve ser aceita como verdadeira.
Mas ainda se a racionalidade for aceita como normativamente desejável, ou mesmo como uma espécie de requisito formal, não podemos dar respostas às questões morais sem recorrer a crenças morais que não podem ser “provadas” dentro do quadro da ciência e da racionalidade, e dependem, para sua verdade—se forem verdadeiras—de algo que é independente de desejos contingentes, pontos de vista, perspectivas ou paixões. Depois eu considero uma questão relacionada: que a ciência é uma atividade social que não pode ser separada das considerações políticas e morais.
Racionalidade e verdade moral
A racionalidade se trata da adequação dos meios aos fins. Quando falamos que uma pessoa é irracional, geralmente queremos dizer que ela está escolhendo meios inapropriados a um determinado fim.
A racionalidade também se trata da coerência das crenças. Se eu acredito em “se X então Y” e também acredito em “X”, então devo também acreditar em “Y”.
Mas há dois sentidos em que a afirmação “devemos ser racionais” exige noções normativas e as mesmas crenças não demonstráveis (isto é, que não podem ser provadas) que algumas pessoas pejorativamente descartam.
Primeiro vamos começar com a afirmação “devemos ser racionais” sem levar em conta o que a racionalidade exige que façamos ou em que ela exige que acreditemos.
Por quê? Por que “devemos” ser racionais? Por que “devemos” acreditar em “Y” se acreditamos em “Se X então Y” e em “X”?
Como podemos “provar” essas declarações do tipo “devemos”?
A resposta curta é que não podemos prová-las. Assim como os axiomas da matemática, elas não podem ser provadas e têm de ser aceitas como verdadeiras. Ou seja, a afirmação “devemos ser racionais” é uma posição normativa não mais segura do que a afirmação “devemos ser bondosos e amar uns aos outros”.
Agora, uma resposta poderia ser que, embora não possamos provar a verdade da afirmação “devemos ser racionais”, essa afirmação deve ser verdadeira porque, sem ela, não podemos fazer afirmações ou ter argumentos, em primeiro lugar. Mas esse simplesmente não é o caso. Mesmo se não reconhecêssemos a verdade objetiva da racionalidade, ainda poderíamos fazer afirmações e ter argumentos que seriam válidos ou inválidos. Podíamos simplesmente não afirmar que alguém que não aceitou a conclusão de um argumento sólido estava sendo irracional. Portanto essa resposta ainda deixa um “devemos” a ser explicado no nível mais básico.
Segundo, mesmo se ignorarmos as preocupações anteriores e aceitarmos que devemos escolher o meio mais favorável aos nossos fins, ou que devemos ter crenças que sejam coerentes com as nossas outras crenças, o que a racionalidade tem a dizer sobre que fins escolhemos e que crenças temos?
Resposta: nada. Absolutamente nada.
A racionalidade é um requisito formal, na melhor das hipóteses, e não pode servir para identificar que fins devemos escolher e que crenças devemos ter. Por exemplo, ter uma conduta que ocasionará o fim do mundo é irracional se você não enxergar a extinção da vida como um fim desejável. Mas para aqueles que pensam que a extinção é valiosa porque consideram os humanos uma praga na Terra, ou que não se importam com as futuras gerações, ou que valorizam coisas que prejudicam o planeta, um comportamento ambientalmente destrutivo pode ser perfeitamente racional. A racionalidade não pode decidir a questão de se a humanidade é uma praga no planeta e deve ser extinta, ou se temos a obrigação de assegurar que o planeta esteja sadio para as futuras gerações porque os humanos têm valor moral.
Semelhantemente, se eu acreditar que “todos os humanos têm um valor inerente igual” e aceitar que os membros do grupo X são, de fato, humanos, então a racionalidade da crença exige que eu conclua que os membros do grupo X têm um valor inerente igual ao dos outros humanos.
Mas apesar da visão do filósofo Immanuel Kant de que a razão requer o reconhecimento do valor inerente igual para os humanos, eu posso rejeitar o igualitarismo por acreditar que os humanos que se distinguem na arte ou na música têm mais valor inerente do que os demais entre nós pois enriquecem nossas vidas de um modo que os demais não enriquecem. Posso tomar a posição de que esses humanos “especiais” não estarão agindo de modo errado se tratarem os outros de um modo totalmente instrumental. Embora Kant apresente convincentes argumentos sobre a igualdade, que eu afirmo em meu próprio trabalho que deveriam ser estendidos aos animais não humanos, simplesmente não há meio de podermos, só com o uso da racionalidade, “provar” que Kant está certo. A teoria de Kant (com ou sem as minhas modificações) requer que tenhamos certas crenças morais sobre a integração à comunidade moral, e nenhuma racionalidade “objetiva” pode nos compelir a ter esses pontos de vista.
A escolha de fins para valorizar, ou de crenças morais para ter, envolve algo que vai além da racionalidade. E não há como evitar isso. Os novos ateístas Hitchens e Harris, e Chris Hedges, são pessoas racionais pois aceitam que suas crenças devem ser coerentes umas com as outras. Mas eles têm crenças morais muito diferentes.
É interessante observar que alguns dos mais proeminentes novos ateístas acreditam, como acreditava Ayn Rand, que o pensamento ateísta racional nos conduz numa direção que simplesmente combina com uma visão de mundo de direita. Conforme mencionei antes, Hitchens era um vigoroso defensor da guerra contra o Iraque e tinha vários pontos de vista de direita, e Sam Harris nos diz que estamos “em guerra com o Islão”, declarando: “A ligação entre a crença e o comportamento eleva os critérios consideravelmente. Algumas proposições são tão perigosas que pode até ser ético matar pessoas por acreditarem nelas”. De fato, Harris professa demonstrar que podemos provar “cientificamente” que o islamismo é uma religião moralmente má.
Independentemente de se acreditar ou não nesses modos de ver (eu certamente não acredito), é meio tolo negar que eles refletem uma crença em certas noções morais que não podem ser provadas como verdadeiras de um modo “objetivo” ou incontroverso. Chris Hedges discorda desses modos de ver, e não é porque ele seja irracional. Ele simplesmente aceita um conjunto de princípios morais diferente. O debate entre os novos ateístas, que têm todo tipo de crenças em uma variedade de noções normativas, e pessoas como Hedges, não pode ser resolvido por nenhum apelo à racionalidade; só pode ser resolvido decidindo qual visão de moralidade você compartilha.
Noam Chomsky descreve Harris e Hitchens como “fanáticos religiosos” que acreditam na “religião do estado” pois argumentam que temos de defender a violência e as atrocidades do estado porque elas estão sendo praticadas para assegurar o progresso humano e trazer outras maravilhosas consequências.
Essa noção de que o mundo está mudando numa direção positiva também encontra expressão em Dawkins, que defende uma total baboseira chamada “Zeitgeist moral”, descrita por ele como um “amplo consenso liberal de princípios éticos” em direção ao qual estamos indo, e que não é impulsionado pela religião e se desenvolve apesar da religião. Fora que alguns dos valores que ele descreve de modo positivo foram primeiramente impulsionados por interpretações não violentas de tradições religiosas e espirituais, alguns dos argumentos que ele desenvolve para mostrar que as coisas estão melhorando são notáveis. Por exemplo, ele nos diz que Hitler “não teria se destacado na época de Calígula ou Gengis Khan”. Ele reconhece que houve casualidades civis no Iraque, mas que elas foram de “magnitude mais baixa do que os números comparáveis da Segunda Guerra Mundial”. Fora que Dawkins julga moralmente as guerras pelo seu número de casualidades (poderíamos, digamos, invadir países que não têm exércitos?; isso certamente reduziria as casualidades), o “Zeitgeist moral está mudando porque morreram menos pessoas numa guerra “preventiva” fabricada contra um adversário que não nos ameaçava (Saddam Hussein) do que numa guerra contra Hitler, o qual, por sua vez, representou um grande progresso em relação a Calígula.
Francamente, acho as posições de Dawkins, aqui, muitíssimo reacionárias.
É interessante que Sam Harris alegue ser um realista moral. Mas, assim como minha alegação de que sou o presidente dos Estados Unidos não me torna presidente, a alegação de Harris de ser um realista moral não o torna um realista moral. Realismo moral é, nas palavras de Russ Schafer-Landau, em seu livro Moral Realism: A Defence (Oxford 2003), a crença de que “há verdades morais que prevalecem independentemente de qualquer perspectiva que se prefira, no sentido de que os padrões morais que fixam os fatos morais não se tornam verdadeiros pela sua ratificação dentro de nenhuma dada perspectiva real ou hipotética”. Não me parece que Harris seja um realista nesse sentido.
Embora Harris não seja claro, ele parece estar argumentando que, por causa dos tipos de seres que somos, não podemos evitar dar valor ao bem-estar, que tratamos como objetivamente valioso, e nos consideramos moralmente obrigados a gerar tanto bem-estar quanto possível. Isso faria de Harris um construtivista pois o que ele está dizendo nessa interpretação é que o bem-estar se torna um valor moral “verdadeiro” como resultado da nossa perspectiva.
Alternativamente, Harris pode estar dizendo que, enquanto uma questão de significado da linguagem, as afirmações sobre a moralidade são realmente afirmações descritivas sobre o bem-estar, e a ciência pode nos dizer se essas afirmações são verdadeiras ou falsas. Ou seja, assim como dizemos que não podemos nos ocupar da ciência sem dar valor a um certo tipo de evidência, coerência, etc. porque é exatamente isso que, por definição, é fazer ciência, não podemos nos ocupar de uma atividade moral sem dar valor ao bem-estar porque isso que é, por definição, se ocupar de uma atividade moral. Portanto, quando dizemos “John deve realizar a ação A”, o que estamos querendo dizer é que “Se John fizer A, provavelmente ocorrerá bem-estar”. A ciência pode nos dizer se, e em que medida, A produzirá bem-estar. Mas isso envolve uma simples deflação semântica (Harris diz que as declarações morais são “idênticas” às declarações factuais sobre o bem-estar) e permite que Harris evite (em seu modo de ver) o problema do “é/devemos” (ver abaixo). Não há nenhum apelo a qualquer padrão normativo último e objetivamente verdadeiro. Isso não é uma posição de realismo moral.
Se Harris for interpretado como dizendo que o bem-estar é valioso da maneira independente contemplada por Shafer-Landau e que estamos obrigados a maximizá-lo, então ele é simplesmente mais um pensador consequencialista e não acrescenta nada de novo à teoria ética, exceto, talvez, por introduzir a noção de que podemos provar “cientificamente” suas proclamações etnocêntricas e xenófobas, como as de que o islamismo é uma religião moralmente má.
Obter um “devemos” a partir do “é” das afirmações da ciência
Os novos ateístas, ou alguns deles, nos dizem que as noções de verdade moral objetiva ou independente, ou as crenças espirituais ou religiosas, não podem nos dizer o que “é”. Apenas a ciência pode nos dizer quais são os fatos “reais”. A ciência fornece a Verdade objetiva. O resto é menos do que a Verdade.
De novo, essa visão ignora que as metateorias que estabelecem o que se considera “ciência” são, como os axiomas da matemática ou a posição de que a racionalidade é um requisito formal, coisas que devem ser aceitas como verdadeiras e que não se pode provar que são verdadeiras. Embora os adeptos do novo ateísmo possam aceitar isso como uma proposição abstrata, eles não conseguem entender seu significado para suas iniciativas.
Thomas Kuhn em The Structure of Scientific Revolutions, provavelmente o livro mais influente sobre filosofia da ciência escrito no século 20, popularizou o uso do “paradigma” para descrever as conquistas científicas que servem durante certo período de tempo para determinar o que se observar, que tipos de perguntas fazer, como estruturar qualquer investigação e como interpretar os resultados das investigações. Kuhn argumentou persuasivamente que não se podia provar se os paradigmas eram verdadeiros ou falsos e que era ingênuo ver a ciência como “Verdade”. Diferentes paradigmas representam diferentes visões de mundo; diferentes pontos de vista.
Paul Feyerabend, em obras como Against Method, foi mais longe com sua noção, argumentando contra a ideia racionalista de que há regras identificáveis do método científico que determinam qual ciência é uma “boa” ciência. Feyerabend promoveu a noção de que a ciência envolve mais mito do que os cientistas querem reconhecer, e que o sucesso dos cientistas frequentemente envolveu elementos não científicos, incluindo inspiração proveniente de fontes míticas ou religiosas. Feryerabend deixou claro que a linha divisória entre a ciência de um lado e a religião, o mito, a mágica e tudo mais do outro é um mito equivalente àquilo que os cientistas alegam rejeitar como mito.
Mas mesmo se não se aceitar o que Kuhn, Feyerabend (e muitos outros) disseram sobre as suposições que a ciência deve fazer e não podem ser provadas, ou que não há uma clara linha divisória entre a ciência e a religião, não se pode acreditar seriamente que a ciência, conforme é praticada, esteja de alguma forma separada das instituições políticas e sociais. Como mostraram Richard Levins e Richard Lewontin em seu inovador livro The Dialectical Biologist, a ciência ocorre dentro de um contexto social e reflete uma perspectiva inerentemente política.
Para entender esse ponto, vejamos um exemplo envolvendo o livro de Richard Dawkins de 1976, The Selfish Gene. Será que Dawkins está fazendo uma afirmação “científica” sobre os “fatos” dos genes, ou, em vez disso, está focando no egoísmo e no altruísmo humanos e usando esses comportamentos para fornecer uma descrição supostamente “científica” do processo evolutivo como uma questão geral, que depois ele usa para explicar o egoísmo e o altruísmo humanos? Eu acredito, juntamente com a filósofa Mary Midgley e outros, que a posição proposta por Dawkins é uma hipótese calcada mais no individualismo reducionista do Iluminismo do que na visão de Darwin, a qual, como argumenta Midgley, envolvia interação e cooperação, e que o gene egoísta não é um fato da natureza. É fascinante notar que o livro de Dawkins se popularizou precisamente na época em que as noções de Reagan/Thatcher sobre a desejabilidade do egoísmo, da independência e do individualismo se popularizaram.
Sam Harris declara explicitamente como “fato” que nós estamos “em guerra com o Islão”. Esse “fato” representa uma declaração objetivamente verdadeira do tipo “é”, ou meramente reflete a adesão de Harris a certas crenças políticas que determinam como ele interpreta o que está acontecendo no mundo e os “fatos” que ele encontra? Harris alega que a moralidade do Talebã é má “do ponto de vista da ciência”.
A ciência nos diz que devemos acreditar no que a evidência parece mostrar. Isso em si é uma afirmação normativa. Mas suponhamos que devamos acreditar no que a evidência mostra. O que conta como evidência? A resposta é que certas evidências, que são coerentes com as suposições do paradigma científico, contam, mas todas as outras evidências são excluídas ou ignoradas. Pode haver tipos completamente diferentes de empirismo (a teoria de que todo conhecimento provém dos sentidos, em vez de ser inato). É incorreto dizer que o realismo moral ou a totalidade das tradições espirituais não se preocupam com a evidência ou que para eles não há evidência. Há uma preocupação com a evidência e há evidência; só que isso não é reconhecido como conhecimento “científico” porque a ciência rejeita esse tipo de evidência logo de saída. Há muitas coisas para se medir; a ciência mede apenas algumas e até define como a medição pode proceder. Tudo mais é ignorado.
E como afirmava William James, podemos ter justificativa para ter crenças espirituais ou religiosas embora não tenhamos evidência para essas crenças.
Os novos ateístas oferecem uma escolha incompleta e empobrecida: uma falsa dicotomia entre o fundamentalismo religioso e o que é, com efeito, cientificismo, ou “uma confiança exagerada na eficácia do métodos da ciência natural aplicados a todas as áreas de investigação (como na filosofia, nas ciências sociais e nas humanidades)”. Mas supondo que a ciência possa nos fornecer algumas afirmações incontroversas do tipo “é”, não podemos obter nenhuma afirmação do tipo “devemos” a partir daquelas afirmações “é”. Como observa Chris Hedges: “A crença de que as disciplinas racionais e quantificáveis como a ciência podem ser usadas para aperfeiçoar a sociedade humana não é menos absurda do que uma crença em mágica, em anjos e na intervenção divina”.
A crença de que a ciência nos provê de respostas “verdadeiras” a perguntas morais importantes tem mostrado, repetidamente, os resultados mais perturbadores. A ciência nos disse que as mulheres ficariam fisicamente avariadas se se educassem demais; de fato, a ciência foi repetidamente usada para justificar a discriminação com base no sexo. A ciência nos disse que as pessoas de cor eram física e cognitivamente diferentes das pessoas brancas, como base “factual” para se justificar a escravidão humana. Há incontáveis exemplos de como a ciência tem sido usada para justificar muita violência e uma ampla gama de discriminação.
Um crítico pode contra-argumentar que a ciência tem sido usada para apoiar bons fins morais também. Por exemplo, os cientistas eventualmente abandonaram as afirmações “científicas” sobre a suposta inferioridade física das mulheres. Mas é esse o ponto. Não é a ciência que impulsiona a moralidade; é a moralidade (e a imoralidade) que impulsiona a ciência. Para fazer uma analogia (bem livre) com a teoria quântica: nossa consciência moral determina a realidade que vemos.
Ateísmo e direitos animais
Muitos defensores dos animais afirmam que são ateus. Eles estão equivocados se pensam que há alguma noção de racionalidade “objetiva”, ou alguma combinação de racionalidade com fatos científicos que, apesar de rejeitar premissas morais, possa garantir a conclusão moral de que devemos parar de explorar os animais.
A filosofia abolicionista que desenvolvi certamente depende da argumentação racional, mas no final das contas se apoia sobre uma base de realismo moral. Por exemplo, quando eu declaro “é errado infligir sofrimento a um ser senciente sem justificação adequada”, quero dizer que isso é um princípio que representa um fato moral. A partir desse princípio, e juntamente com a premissa lógica de que a noção moral não tem sentido se uma justificação adequada puder incluir o prazer, a diversão ou a conveniência de quem está impondo o sofrimento, eu argumento racionalmente até concluir que não podemos justificar a maioria dos usos de animais, por mais “humanitários” que possam ser. (Tenho outros argumentos contra qualquer uso de animais que não seja descartado pelo argumento da “necessidade”).
Portanto a teoria (ou essa parte dela) se baseia em lógica e racionalidade, e certos fatos não morais sobre a senciência animal. Mas você não pode chegar a nenhuma conclusão normativa se não concordar com o fato moral de que é errado infligir sofrimento a outro ser senciente sem uma justificação adequada. Se você me pedir para “provar” a verdade desse fato moral usando uma estrutura prescrita pela ciência, ou de um modo que toda pessoa racional seja compelida a aceitar, eu não vou poder provar. Isso não significa que “é errado infligir sofrimento aos animais sem uma justificação adequada” não seja um fato moral; não significa que nenhuma evidência o sustente. Minhas posições são baseadas em intuições morais que envolvem crenças baseadas na experiência, mas que não podem ser “provadas” com o tipo de evidência usada no paradigma científico prevalecente. Eu sustentaria, entretanto, que a verdade da intuição moral “é errado infligir sofrimento aos animais sem uma justificação adequada” é evidente por si mesma, muito embora essa verdade não se apoie na observação.
Outro argumento que eu defendo é que se for para os animais terem alguma importância moral, devemos lhes atribuir o direito de não ser tratados como propriedade. Também argumento que atribuir-lhes esse único direito requer a abolição de todo uso institucionalizado de animais, por mais “humanitário” que seja. Como no caso do argumento anterior, estou me apoiando em uma intuição moral: a de que os animais contam moralmente, mesmo se houver diferenças cognitivas entre os humanos e os não humanos. Se você compartilhar dessa intuição—se você aceitar o fato moral de que os animais importam moralmente—então a racionalidade requer que você reconheça que os animais têm um direito pré legal, e básico, de não ser propriedade. Mas a racionalidade não requer que você reconheça que os animais não são meras coisas.
Além disso, Peter Singer e outros que promovem uma posição bem-estarista reconhecem que os animais têm interesses moralmente significativos, mas, ao contrário da minha posição, argumentam que podemos, como uma questão moral, manter a instituição da propriedade animal porque os animais não são reflexivamente autoconscientes à maneira dos humanos, e não têm interesse em continuar a viver; portanto, podemos usá-los e matá-los para os propósitos dos humanos, contanto que os tratemos de um modo que dê suficiente consideração moral aos seus interesses, particularmente o interesse em não sofrer.
É aqui que reside outra questão importante que não pode ser resolvida simplesmente com um apelo à racionalidade ou aos fatos da ciência. Singer e eu concordamos que a senciência é tudo de que se precisa para os animais serem moralmente significativos, mas, por outro lado, divergimos pois Singer não considera que a senciência seja suficiente para dar origem ao interesse na vida continuada, o qual, na opinião dele, é necessário para se ter, ao menos, uma proteção moral prima facie contra ser usado como um recurso. Eu considero a senciência suficiente para dar origem a um interesse na existência continuada, e argumento que esse interesse deve ser protegido não apenas como uma questão prima facie, mas como uma questão de direito moral, e que não podemos justificar nenhum uso de animais.
Fora o fato de que eu reconheço os direitos morais e Singer não (outra questão que não pode ser resolvida apelando-se à racionalidade científica), há um sentido em que nossa divergência nesse aspecto parece, ao menos em parte, ser uma questão factual que pode ser resolvida por alguma espécie de descoberta “científica” sobre a autoconsciência dos animais. Ou seja, Singer diz que a maioria dos animais não tem interesse na existência continuada porque esses animais não são autoconscientes; eu nego isso. Embora haja um componente factual aqui, que concerne à natureza da consciência dos animais, há, mais importante ainda, o aspecto não factual de que a ciência não pode resolver o que é que conta como autoconsciência para propósitos morais. Singer afirma que a autoconsciência que importa é a autoconsciência reflexiva, e que a maioria dos animais não humanos não é autoconsciente desse modo; eu aceito que a maioria dos animais provavelmente não tem autoconsciência reflexiva, mas sustento que isso é irrelevante porque a única autoconsciência que importa para se ter interesse na existência continuada é aquela que é incidental à consciência perceptiva que requer apenas a senciência.
Portanto, Singer e eu podemos concordar quanto aos fatos da consciência dos animais, mas chegamos a conclusões diferentes devido às nossas diferenças quanto ao que deve ser considerado o tipo de autoconsciência que conta para se ter interesse em continuar existindo. De todo modo, a racionalidade e a ciência não podem resolver esses tipos de divergências.
Racionalidade e uma revolução do coração
Costumo dizer que acabar com a exploração animal requer “uma revolução do coração”. O que quero dizer com isso é que devemos rejeitar todas as ideologias de dominação e poder, sejam elas religiosas ou seculares, que nos permitem transformar outros seres sencientes—humanos ou não humanos—no “outro” e assim ignorar seu valor moral e tratá-los como coisas. Devemos abraçar a não violência como um princípio normativo básico—um princípio que vemos refletir uma verdade moral—e como o princípio moral fundamental do qual emanam todas as nossas posições morais. A noção de parentesco/afinidade do filósofo Gary Steiner está diretamente relacionada a essas ideias.
Acredito que muitas tradições espirituais e religiosas, se entendidas apropriadamente, consideram a não violência um dos principais valores. Rejeito todas que não fizerem o mesmo. Entretanto, não as rejeito por serem “irracionais”; as ideologias de poder e dominação podem ser perfeitamente racionais se sua bússola moral estiver apontada para elas. Rejeito as ideologias de poder e dominação, sejam elas religiosas ou seculares, porque elas estão, no meu modo de ver, moralmente erradas.
Uma revolução do coração requer que nos recriemos de modo coerente com as mais altas aspirações comuns a todas as tradições que reconhecem a importância da não violência, e que rejeitemos todos os contextos que promovam a violência, a discriminação, o preconceito e o ódio.
Parte do apelo dos novos ateístas é que todo mundo, inclusive quem possa ter pertencido a uma religião tradicional, não aguenta mais a violência—o ódio, o preconceito, a discriminação, as guerras, o materialismo, etc.—promovida por algumas religiões institucionalizadas. Rejeitar esse ódio e essa violência é bom. Muitos defensores dos animais corretamente observam que tradições como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo têm sido interpretadas para justificar o especismo e a exploração animal. Isso tem levado vários desses defensores a se declararem hostis às crenças espirituais ou à noção da verdade moral objetiva. Mas talvez devamos considerar que a verdadeira culpada aqui não é a crença espiritual ou religiosa em si, mas a violência que está sendo interpretada, correta ou incorretamente, como promovida por algumas dessas tradições.
Dentro da medida em que qualquer espécie de violência seja vista como aprovada por “deus” ou pela religião, livrar-se do deus ou da religião não resulta, necessariamente, em paz, amor e justiça. Instituições seculares também promovem a violência.
O novo ateísta Christopher Hitchens disse: “Estou absolutamente convencido de que a principal fonte de ódio no mundo é a religião, e a religião organizada”. Eu discordo. Ódio é que é o problema; nem a religião nem as instituições seculares causam ódio. Elas simplesmente fornecem um mecanismo para expressá-lo.
Para mim, o conceito da revolução do coração se apoia numa noção moral que não se pode provar “verdadeira” da maneira que a ciência caracteriza a verdade, e dado o que a ciência considera uma evidência aceitável. Ele requer uma crença na verdade moral da não violência. E a racionalidade científica não pode nos levar a essa verdade moral, nem a qualquer outra.
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Se você não for vegano(a), por favor torne-se vegano(a). É fácil, e melhor para a sua saúde e o ambiente (supondo-se que você dê valor à sua saúde e ao ambiente, mas a racionalidade não requer que você faça isso). Mas, mais importante ainda, é a coisa moralmente certa a fazer (mas essa é uma conclusão moral que se apoia numa argumentação que inclui premissas morais que não podem ser derivadas de fatos científicos ou alguma noção não normativa de racionalidade).
Gary L. Francione
Professor, Rutgers University
© 2012 Gary L. Francione
Tradução: Regina Rheda