sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Tem fé (no bem-estar animal)?

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 2 de outubro de 2011


Eu rejeito as reformas do bem-estar animal e as campanhas de um só tema, não apenas porque elas são incoerentes com as reivindicações de justiça que devemos estar fazendo se realmente acreditamos que a exploração animal é uma coisa errada, como também porque essas abordagens não podem funcionar em termos práticos. Os animais são propriedade e custa dinheiro proteger seus interesses; portanto, o nível de proteção dado a esses interesses sempre será baixo e, mesmo nas melhores circunstâncias, os animais ainda serão tratados de um modo que constituiria tortura se fosse aplicado a seres humanos.
Ao endossar as reformas bem-estaristas que supostamente tornam a exploração mais “compassiva”, ou as campanhas de um só tema que sugerem, falsamente, que há uma distinção moral coerente entre a carne e o laticínio, ou entre a pele e a lã, ou entre o bife e o patê de foie gras, nós traímos o princípio de justiça que diz que todos os seres sencientes são iguais para o propósito de não ser usados exclusivamente como recursos dos humanos. E, no nível prático, não fazemos nada além de tornar as pessoas mais tranquilas quanto à exploração animal.
Eu sustento que aqueles que acreditam que os animais são membros da comunidade moral deveriam, em vez disso, deixar claro que o veganismo, definido como não comer, não vestir e não usar animais, é a base moral inegociável e inequívoca, e deveriam investir seu trabalho e seus recursos na educação vegana de base que pode tomar inúmeras formas criativas, mas nunca deve envolver violência.
Meus críticos argumentam que minha posição quanto à necessidade da defesa vegana criativa e não violenta requer uma espécie de fé em que essa abordagem vai funcionar.
Considero essa crítica uma ironia pois, se é que alguma posição requer fé (definida como uma crença mantida contra toda evidência empírica existente), essa posição é a de que as reformas do bem-estar e as campanhas de um só tema darão em alguma coisa que não seja mais exploração animal.
Bem-estar animal: por quê?
Por que alguém pode acreditar que as reformas do bem-estar levarão à abolição? Se olharmos a história das reformas do bem-estar animal, veremos que a maioria se trata de reformas menores, a maioria nem sequer se cumpre, e a maioria na verdade aumenta a eficiência produtiva e beneficia economicamente os produtores. Há 200 anos que temos o paradigma do bem-estar animal e estamos explorando mais animais agora, e de maneiras mais horríveis, do que em qualquer outra época da história humana.
Por que alguém pode acreditar que promover a exploração “feliz” levará à abolição da exploração? Use o bom senso. A exploração “feliz” não levará a nada, exceto a um público que se sente melhor quanto a determinadas formas de exploração animal. Se esse não fosse o caso, as indústrias de exploração animal, em parceria com as grandes corporações do bem-estar animal, não estariam investindo todos os recursos que estão investindo em campanhas pela exploração “feliz” e selos de certificação “humanitária”.
Por que alguém pode acreditar que continuando a reforçar e consolidar o paradigma que trata os animais como propriedade, eventualmente aboliremos sua exploração?
Por que alguém pode acreditar que as campanhas de um só tema levarão à abolição da exploração? Dê uma olhada nas campanhas de um só tema que já duram há muito tempo, como a campanha contra a pele. Ela vem sendo feita há décadas e a indústria da pele está mais forte que nunca. Por quê? Porque não existe um princípio moral que possa servir para distinguir a pele da lã ou do couro, ou para distinguir comer animais de vestir roupas feitas de animais. Enquanto as pessoas não entenderem e não aceitarem o princípio moral geral, elas não conseguirão enxergar o problema dos usos específicos. E dizer, como muitos defensores dos animais dizem, que a pele representa um uso gratuito de animais, não é resposta. Comer animais também é um uso gratuito de animais. Nós os comemos porque eles têm um sabor gostoso. E o prazer do paladar não é uma justificativa melhor do que a moda.
Conforme já escrevi em outros lugares, os apoiadores das reformas do bem-estar nunca tratam dessas questões; eles simplesmente declaram que qualquer crítica é “divisionista” ou que qualquer alternativa é “idealista demais”. Em outras palavras, eles não têm nada a dizer.
O veganismo como base moral: por que não?
O apelo da defesa vegana criativa e não violenta é que ela desafia as pessoas a aplicarem um princípio moral que a maioria já aceita e diz que considera importante: que é moralmente errado infligir sofrimento e morte aos animais a menos que seja necessário, e o prazer, a diversão e a conveniência não podem ser suficientes para demonstrar necessidade. Quando as pessoas são confrontadas com o argumento de que criticar Michael Vick por causa da rinha de cães não faz sentido se estamos comendo animais ou produtos de origem animal, ou com a semelhança entre os animais que elas amam e os que elas comem ou vestem, pode ser que elas todas não virem veganas imediatamente, mas pelo menos conseguimos fazê-las começar a pensar sobre a questão geral do uso de animais em termos morais. E dentro da medida em que esse argumento repercute – e vai repercutir para muita gente – elas começarão a avaliar as questões da ética animal de uma maneira diferente.
Se, como eu sustento, não podemos justificar o uso de animais, por mais “humanitário” que seja, então temos de ser claros quanto a isso. Devemos ser claros quanto ao fato de que não podemos justificar comer, vestir ou usar animais. Ponto final. Se as pessoas preocupadas com a questão ainda não estiverem dispostas a desistir de usar animais e virar veganas, elas podem dar os passos graduais que quiserem. Mas esses passos graduais nunca devem ser caracterizados como normativamente desejáveis, se de fato acreditarmos que o uso de animais é injusto. Assim como nunca diríamos que o sexismo ou o racismo “humanitário” ou “feliz” é aceitável, nunca deveríamos caracterizar como moralmente aceitável a carne ou o laticínio ou qualquer outro produto animal “humanitário” ou “feliz”.
Finalmente, se promover o veganismo como base moral é uma questão de “pureza” moral, então promover a justiça, quando se trata de seres humanos, também é. Certas pessoas nos dizem que mesmo se virarmos veganos não poderemos evitar causar prejuízos ao não humanos. É verdade. Viver no mundo e praticar qualquer tipo de ação tem, necessariamente, consequências adversas para outros seres, humanos e não humanos. Devemos, é claro, nos empenhar em causar o menor dano possível a todos os seres sencientes. Mas o fato de não podermos evitar todos os danos não significa que não devamos, pelo menos, cessar todo dano intencional que infligimos aos não humanos sencientes, assim como o fato de não podermos eliminar toda a violência no mundo não significa que seja moralmente aceitável assassinarmos outros humanos.
Se é que algum dia abandonaremos o paradigma da propriedade, precisamos conseguir que as pessoas reconheçam que o uso de animais, por mais “humanitário” que seja, não pode ser justificado moralmente. Estou confiante no fato de que a defesa vegana criativa e não violenta é não apenas coerente com a exigência de justiça que, a meu ver, está implicada na posição dos direitos animais, como também é o melhor modo de atingir o objetivo de sair do paradigma da propriedade em direção à noção de que os animais são pessoas morais.
Todos os defensores que estão engajados na educação vegana criativa e não violenta contam que os resultados são surpreendentes; que as pessoas reagem, e reagem positivamente.
E estou certo de que qualquer crença de que as reformas do bem-estar, as campanhas de um só tema, a exploração “feliz”, etc. darão em algo que não seja mais tranquilidade quanto à exploração animal requer um forma particularmente cega de fé.
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Se você não for vegano(a), por favor considere tornar-se vegano(a). É fácil ser vegano; é melhor para a sua saúde e o planeta; e o mais importante é que é a coisa moralmente certa a fazer.
Se você for vegano(a), eduque todo mundo com que entrar em contato, de um modo criativo e não violento, sobre o veganismo. Se realmente considerarmos os animais como membros da comunidade moral; se realmente acreditarmos que não podemos justificar a morte e o sofrimento desnecessários, então não podemos justificar bilhões de mortes de animais com base no prazer do nosso paladar.
E lembrem-se, por favor: o veganismo não é apenas uma questão de reduzir o sofrimento; é uma questão de justiça moral fundamental. É o que devemos àqueles que, como nós, valorizam suas vidas e querem continuar a viver.
Gary L. Francione
© 2011 Gary L. Francione
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Tradução: Regina Rheda

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Uma nota sobre a inteligência semelhante à humana e o valor moral

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 2 de outubro de 2011


Com frequência vemos notícias de que os cientistas determinaram que os animais não humanos têm certas características cognitivas que associamos à inteligência humana. A implicação disso é que se os animais não humanos têm uma inteligência parecida com a dos humanos, então eles têm mais valor moral; quanto mais “inteligentes” eles forem em termos humanos, mais valiosos moralmente eles são.
Essa abordagem é problemática por várias razões:
Primeiro, não há absolutamente nenhuma relação lógica entre a posse de inteligência semelhante à humana e a moralidade de usar animais como recursos. A posse de inteligência semelhante à humana pode indicar que certos animais têm interesses que os outros animais talvez não tenham. Os grandes símios não humanos, que realmente possuem uma inteligência semelhante à humana sob muitos aspectos, podem ter interesses que cães ou peixes não têm. Mas os grandes símios não humanos, os cães e os peixes têm, todos eles, interesse em não ser tratados como recursos, simplesmente porque são sencientes, ou têm consciência subjetiva. Todos os seres sencientes têm interesse em não sofrer e em continuar a viver, e esses interesses são necessariamente frustrados se eles são tratados como recursos dos humanos.
Proclamamos que a inteligência humana é moralmente valiosa per se porque somos humanos. Se fôssemos pássaros, proclamaríamos que a habilidade de voar é moralmente valiosa per se. Se fôssemos peixes, proclamaríamos que a habilidade de viver debaixo d’água é moralmente valiosa per se. Mas, independente das nossas proclamações obviamente interesseiras, não há nada de moralmente valioso per se na inteligência humana.
Segundo, se alegamos que a inteligência semelhante à humana é moralmente relevante, então ficamos necessariamente com a ideia de que os humanos com mais inteligência são mais valiosos, moralmente, do que os humanos com menos inteligência. É verdade: podemos não tratar todos os humanos da mesma forma. Pagamos mais a um neurocirurgião do que a um faxineiro porque valorizamos mais a perícia do neurocirurgião. Mas, mesmo acreditando que essa diferença salarial seja legítima, será que diríamos que o faxineiro vale menos do que o cirurgião para o propósito de decidir quem deveria ser usado como doador forçado de órgãos, ou como participante involuntário de um experimento doloroso? Claro que não. Para o propósito de ser usado exclusivamente como recurso dos outros, ambos são iguais.
E a menos que queiramos ser especistas, devemos concluir que todos os sencientes – humanos ou não humanos – são iguais para o propósito de não ser tratados como recursos.
Terceiro, o jogo dos “inteligentes” é um jogo que os animais não humanos nunca podem ganhar. Há décadas que sabemos que os grandes símios não humanos têm uma inteligência parecida com a humana, o que não deveria surpreender, dada a semelhança genética entre os humanos e os grandes símios não humanos. Provavelmente nenhum outro animal não humano jamais exibirá maior grau de inteligência parecida com a humana. Mesmo assim, continuamos a explorar os grandes símios não humanos (e muitos outros primatas não humanos) de tudo quando é maneira.
O jogo dos “inteligentes” não passa disso – um jogo. É mais uma razão para não darmos valor moral aos animais hoje, preferindo fazer mais pesquisas tolas (e que os prejudicam) para determinar se eles podem resolver quebra-cabeças matemáticos humanos e realizar outras tarefas sem nenhuma relevância moral.
Nós já sabemos tudo que precisamos saber para concluir que não podemos justificar comer ou usar animais – que, como nós, os animais são sencientes. Eles são subjetivamente conscientes. Eles têm interesse em não sofrer e em continuar a viver.
Nada mais é necessário.
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Se você não for vegano(a), por favor considere tornar-se vegano(a). É fácil fazer isso; é melhor para a sua saúde e o planeta; e o mais importante é que é a coisa moralmente certa a fazer.
Se você for vegano(a), eduque todo mundo com que entrar em contato, de um modo criativo e não violento, sobre o veganismo.
Gary L. Francione
© 2011 Gary L. Francione
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Tradução: Regina Rheda